5.6.04

O regresso a uma esquina desdobrada

Há fotografias que não existem. Vemo-las nos ecos da nossa vida, nos cantos de memórias de outros lados que não estavam lá. Mas podiam ter estado e não se sabe porque é que não estiveram. Um dia viramos uma esquina para um lado sem saber que ali adiante, no passeio, está o outro destino, aquele que só se encontra depois. Era uma vez uma menina pequena que dobrou uma esquina. Mas não vamos atrás dela. Ela irá para diante, noutra rua, noutro lado, sem saber que do lado de lá da esquina, a outra, aquela que não foi dobrada, está um jardim. É um jardim muito estranho, com árvores pequenas e muito tortas e rios que correm no meio dos troncos e manchas de areia no chão, com pedrinhas às cores e conchas e madrepérolas e porquinhos cor de rosa a correr pelo meio de uns caminhos de lajes azuis e verdes, que fazem desenhos de ondas e parece mesmo que são peixes voadores, de tão depressa que passam a correr. No meio de um desses caminhos está uma menina. É morena e tem os cabelos muito compridos e emaranhados, cheios de nós de corridas que deu e de pressas em sair de casa e de ó mãe não é preciso pentear mais, está bom assim, elas estão à espera e elas estão ali também. Uma delas está a dar de comer a um porquinho, com ele ao colo. Tem um sorriso rasgado de quem ri sempre, mesmo quando o caso é grave e ri-se também para o porquinho. Dá-lhe migalhas de um bolo que tem na mão e depois, quando o bolo acaba, tira outro de um saquinho que tem ao lado e dá mais. Há mais porquinhos que acham uma boa ideia e também se aproximam e ela ri-se e diz, há para todos, e tu não queres um bolo? Mas a menina do cabelo comprido emaranhado está distraída a juntar conchinhas na areia que está ao lado do caminho de ondas de azulejos e diz agora não posso e a outra menina está sentada encostada a uma das arvores tortas a ler. O livro tem na capa um boneco azul com uns pés muito grandes. Ela está muito quietinha e ajuizada e, de vez em quando, vai olhando para as outras com ar de quem toma conta. Passa a mão pelo cabelo, muito curto e vermelho e tem sardas no nariz. E responde à outra menina ainda matas esse porquinho com tanta comida mas a outra continua a rir e continua a dar migalhas aos porquinhos, que agora são muitos. E, de repente, a menina do cabelo emaranhado diz, acabei, fiz colares para todas! e as amigas largam os porquinhos e o livro e vão a correr e dizem, são lindos! E embrulham-se em colares de pedrinhas e pulseiras de conchinhas e depois vêem que sobrou um colar. Vamos deixá-lo aqui, decide a ruiva. Talvez alguém o encontre. Vou também deixar um bolo, diz a risonha. E a morena, diz, já acabaste o livro? A ruiva responde que não, mas não faz mal, também o deixo. E, no caminho de casa, perguntam umas às outras: achas que alguém vai encontrar as nossas coisas? Era uma vez uma menina pequena que dobrou uma esquina. Foi andando muitos anos e um dia (um dia destes) encontrou um colar de conchas e pedrinhas e pensou que era a coisa mais bonita e mais feliz que alguma vez tinha visto; encontrou um bolo que era feito de migalhinhas risonhas, mesmo quando o caso é grave; e encontrou um livro. Que traz sempre à beira dela.
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