7.6.04

Dia D - 6 de Junho

Há algumas imagens que me ficaram da viagem que fiz à Normandia: uma são os cemitérios. A outra é a escarpa. Muitos anos a ver filmes constroem ideias que não correspondem à realidade. Até ao soldado Ryan, o dia D trazia-me lembranças de filmes com barcos carregados de soldados americanos, praias e soldados alemães do lado de lá. Na realidade, os soldados alemães estavam do lado de cima. É essa a primeira e mais assustadora imagem que nos fica, quando se espreita lá de cima para Omaha Beach. É não ver a praia. A praia está lá muito em baixo, numa costa de escarpas e praias recortadas. E é preciso olhar em redor, ver os bunkers e as redes que ainda lá estão, para perceber que aquilo se passou realmente ali e não é filme; e tal como a realidade nos vai habituando, é sempre muito mais sinistra e chocante que as imagens romanceadas de praias e soldados que nos foram mostrando. Há uma espécie de silêncio cortado pelo vento, poucas turistas, é um dia de sol de inverno. Algumas placas avisam para não se sair dos caminhos, pois sessenta anos depois, toda aquela zona continua a ter bombas enterradas. Mas não seria necessário qualquer aviso. A sensação é de cemitério, de respeito e pena e orgulho e tristeza. Ali fez-se história e ali mudou-se o destino do mundo. Não se fala, olha-se e absorve-se, para não esquecer nunca mais. Não me lembro se fui primeiro ao cemitério americano ou ao alemão. Mas a diferença é gritante. O americano é aquele que já vimos muitas vezes em fotografias. As cruzes brancas até ao horizonte, o momumento em arco e tudo o resto: a estrada de acesso impecável, os parques de estacionamento, a loja de recuerdos e do livro de visitas, os soldados a guardarem e a manterem a ordem, relvados verdes, cruzes brancas, um cenário de sossego e árvores e passarinhos, uma homenagem de paz aos vencedores caídos. O cemitério alemão está escondido numa ruela. Um beco onde se estaciona o carro ao lado de um muro a cair e onde não há mais ninguém. Uma placa avisa que vai haver obras de melhoramento. Um portão aberto e do lado de lá, cruzes pretas e placas pretas no chão, cinco placas, uma cruz. No meio das árvores. Dou dez passos para dentro do cemitério. E começo a ler as datas nas placas. Os miúdos não tinham mais de quinze anos. Eram os maus da época. Mas eram pouco mais do que crianças. Fujo a chorar. Não é nada que não soubesse já, mas é nestas alturas que a injustiça das guerras nos dá uma martelada no cérebro.
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