5.5.04

Considerações sobre um bife imperial

Fui comer um bife à Império. Considero o bife Império como um dos melhores bifes que se comem nesta cidade. É um bife sério, a nadar num colesterólico molho, com um ovo estrelado que se paga à parte e umas batatas fritas mesmo no ponto para serem comidas mergulhadas no dito molho. Na mesa de quatro, também se comeram sete pães e não são pequenos. Gosto de sítios onde comer um bife é uma religião. Há outras e bem perto desta, mas não sou devota senão de prazeres terrenos (e da Igreja do Imaculado Blog, mas isso são contas de outro caderno). O Café Império é um café extraordinário. Por ser lindíssimo e por ter um ar de mais decadente é impossível, desde o homem dos jornais e cigarros à entrada até às mesas atrás das bilhas de gás. Tem um encanto um pouco sujo, que tanto se presta a almoços de vamos comer um bife a sério, como outros, menos sérios e também um tudo nada no limiar do cristalino. Há uns anos atrás, mercê da minha amiga Maria Felicidade Upapoa (Uma Perna Aberta Para Os Amigos), costumava ir lá comer um bife todos as semanas. A Maria Felicidade era uma moça ladina dos seus quarenta e tais que ostentava uma vida notoriamente generosa. Uma larga aliança e anel de noivado com o diamante da praxe e o oiro polido por vinte anos de uso. Numa das pulseiras tilintavam quatro corações e usava sempre camisolas de gola subida para esconder do pessoal menor a tatuagem de uma flor com abelha incluída, feita no auge da histeria de Vilar de Mouros, nos tempos em que o Audi do Anastácio era ainda uma Ford Transit com um colchão atrás, onde tinha tido lugar a (muito charrada) concepção do mais velho dos corações de oiro. Pode dizer-se que a Maria Felicidade tinha tudo. Excepto o que lhe interessava realmente, sendo uma (como já disse antes) rapariga ladina. A Maria Felicidade gostava de andar no arame. Sem rede (e sem arame, na forma literal. Isto era uma figura de estilo). Ora o Anastácio, administrador de empresas de sucesso no ramo do leasing automóvel, era um homem dedicado ao trabalho. Não tinha horas e o único ponto que picava era o ponto situado na Maria Felicidade, todos os domingos de manhã, entre as onze e as onze e vinte. Era um homem meticuloso e deve-se também a isso o seu sucesso profissional, justiça lhe seja feita. E a Maria Felicidade não se podia queixar senão da falta de falta de horários e até de, uma vez por outra, um horário mais alargado no que lhe dizia respeito. Toda a gente sabe o que acontece num caso destes. Quando falta em casa alguma coisa da lista de compras, há que tomar medidas por forma a colmatar a referida falha. Neste caso concreto, a Maria Felicidade, há alguns anos que colmatava essas falhas com uma série de items que se iam sucedendo, talvez na esperança de encontrar o mais apropriado. Ou por gostar de variedade. Ou as duas coisas. A única coisa que fazia questão (para além dos requisitos óbvios) era que o item fosse proveniente de local afastado do seu habitat. E, como qualquer mulher que adquire um produto novo, também gostava de o mostrar às amigas. Esclareça-se também que a Maria Felicidade gostava de comer. Possa ter-se depreendido esse facto do parágrafo anterior, mas nada mais longe do cerne da presente questão: a Maria Felicidade gostava de bifes. E eu gosto de bifes. E os items não tinham direito a voto. E assim, durante as suas temporadas, lá ia eu ao bife Império. Mais a Maria Felicidade e o seu item da altura. E comíamos o bife, enquanto conversávamos sobre as montras da Guerra Junqueiro, o avançar da última campanha de promoções do Anastácio e a evolução semanal dos corações de oiro. O bife, perdão, o item, abria a boca, metia mais um bocado de pão com molho ou um gole de imperial e o almoço passava-se agradavelmente. A Maria Felicidade não olhava para o relógio, acabava de comer sempre depois de mim e nunca, em tempo algum, lhe encontrei pressa nos modos. Uma verdadeira senhora. E uma amiga verdadeira. Nunca lhe cheguei a perguntar. Discutem-se coisas entre amigas que são de cariz íntimo. E soube sempre de todas as características do item em questão. Mas há coisas que não se fala: nunca lhe perguntei como é que resolvia a questão da digestão. Mas também, nunca me constou que tivesse parado. Há mulheres que não sofrem de problemas de estômago.
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